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"Transformar a consciência em ação para uma Terra mais próspera"


"Transformar a consciência em ação para uma Terra mais próspera".

Em 2020, este slogan foi escolhido para comemoração dos 50 anos do Dia da Terra e dos 20 anos do lançamento da Carta da Terra, pela Secretaria Geral do Movimento Carta da Terra Internacional (Earth Charter International), sediada na Universidade Internacional da Paz, Costa Rica. Como parte das comemorações para o dia da Terra, 22 de Abril, foram organizados três diálogos virtuais mediados pela secretaria geral Miriam Vilela.

Deles participaram:

1. Leonardo Boff e Mateo Castillo;

2. Ricardo Young, Marina Silva e Rose Marie Inojosa;

3. Fritjof Capra e Sam Crowell.

O “Instituto Oca do Sol” é uma organização não governamental da sociedade civil com sede de Brasília, tendo como sua missão o desenvolvimento humano integral e a difusão e a prática dos princípios da Carta da Terra.

Nós nos propusemos a transcrever e organizar estes três diálogos na forma de textos contínuos, pois consideramos que eles possuem extrema clareza para fazer compreender a riqueza que a Carta da Terra traz embutida em si como potencial de uma consciência renovada que venha a atuar como base ética da almejada transformação para o Bom Viver e para o Bem Viver

Leonardo Boff e Mateo Castillo

"Hacia un Nuevo Paradigma: Colaboración en tiempos de Pandemias y más allá".

Miriam Vilela

Comemoramos hoje, 22/04/2020, os 50 anos do Dia da Terra. Em 1972 foram lançados o livro "The Limits of Growth"e também o Relatório de Roma. No mesmo ano aconteceu a I Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, também conhecida como Conferência de Estocolmo. Estes foram o início de movimentos que têm elevado a nossa consciência sobre as questões ambientais.

Neste dia celebramos também os 20 anos do lançamento da Carta da Terra. O slogan escolhido para o presente momento foi:

"Transformar a consciência em ação para uma Terra mais próspera".

Muitos julgam que a Carta da Terra trata somente de forma abstrata da ética, dos valores e da visão de mundo que devem orientar a ação. Nosso esforço este ano é, a partir dela, articular com a prática, com a ação concreta, uma ética planetária de cuidado e responsabilidade.

Entramos numa era em que precisamos de uma mudança de mentalidade, de pensar um sistema global que desencadeie uma nova consciência do bem comum. Pensar sobre nossa essência, sobre nosso papel aqui, nossa responsabilidade e conexão com o todo. Pensar um novo paradigma da comunidade planetária.

Leonardo Boff

A Carta da Terra ajudou a humanidade a redescobrir a Terra. Ambas formam uma única entidade. Ela torna claro que temos um único planeta como casa comum e dentro dele convivemos e temos um mesmo destino. Todos dependemos uns dos outros, todos estamos interligados.

A Carta da Terra é a primeira tentativa de criar um documento que pode nos unir. Falta ainda um pacto social mundial que envolva todos os povos e construa políticas, formas de educação e de produção econômica que assegurem sua vitalidade.

O desafio fundamental é construir a Terra como casa comum. E ela está ameaçada. As bases que sustentam a nossa vida estão em perigo. Por isso a necessidade de um pacto global de cuidado com a Terra, ou poderemos assistir à nossa destruição e a de toda a diversidade da vida.

A Carta da Terra nos ensina isto. Ela nos dá uma ética, princípios e fórmulas de convivência entre nós e com toda a comunidade da vida. E nos diz que a Terra é o nosso lar, que ela é viva e que temos de cuidar dela.

Esta Terra viva sofreu muita violência nos últimos três séculos. Agora, com a crise do corona vírus, ela nos coloca um limite e nos dá um sinal.

A Terra tem nos dado tudo o que necessitamos e nós lhe devolvemos golpes. Não podemos continuar assim. Se como a uma mãe eu a amo, eu a venero, então atribuo a ela cuidados e carinho. Precisa haver um novo pacto. Temos de mudar a relação com a Terra, com a natureza e isto não é uma mudança rápida. Iremos lentamente descobrir formas distintas de produção, de relação com as águas, com o ar, e recompor nossa forma de habitar a casa comum.

O destino comum nos convoca a um novo começo. E para isto a mentalidade terá de mudar. Mudar o coração, tornar a razão sensível, sentir a dor da Terra e de seus pobres. Compreender a responsabilidade de cada um, de cada país, de cada sistema, numa interconexão de todos com todos. Só assim alcançaremos um modo sustentável de viver.

É preciso ler e estudar a Carta da Terra. Ela tem um programa para um novo rumo. Devemos passá-la às bases, aos povos, aos grupos. Alcançar uma consciência coletiva da nova humanidade que vai surgir. Ela aponta um novo cenário ao dizer que não somos donos do planeta, mas parte da natureza e do seu todo. Se a enfermamos, nós mesmos adoecemos.

Temos de refazer este pacto da natureza e da afetividade. Creio que é inevitável. Resgatar a razão sensível, desenvolver o coração, que é muito mais ancestral do que a razão, tem 220 milhões de anos. É o coração que nos empenha, que nos lança.

Estabelecer relações de colaboração, de amizade, reconhecer a riqueza das diferenças: podemos ser humanos de formas diferentes. Sentir, cultivar nossos grandes sonhos. Com um consumo sóbrio, compartido, para que todos possam viver. Ajudarmos uns aos outros, trocar riquezas, bens, para garantir um futuro comum. Cultivar o amor, a solidariedade, a fraternidade, a convivência, a espiritualidade, que criam as grandes transformações. São estes valores de uma energia poderosa e amorosa que estarão na base de uma cultura nova, sem a qual não há sustentabilidade possível. Vamos sair desta crise com o coração mais sensível.

Vivemos uma hora de caos mundial, não sabemos para onde vamos. Essa crise refutou o capitalismo e o neoliberalismo, que têm como eixo central a competição e não a colaboração, que numa relação utilitária não reconhecem a Terra e os seres da natureza como valores em si mesmos. Ela derrota o individualismo, pois demonstra nossa interdependência e a necessidade de nos cuidarmos mutuamente.

Para o pensamento dialético, o caos gera uma ordem mais alta. O Papa teve a intuição e nos conclamou a sermos os profetas do novo, os poetas criadores que reinventam a democracia em harmonia com os limites, a diversidade e as dinâmicas da natureza.

Encostamos os limites da Terra, a partir de onde ela já não poderá mais auto recuperar-se. Estamos destruindo as bases que a sustentam. Podemos nos autodestruir. Temos de dar-lhe tempo para se refazer. Por isso, o primeiro conceito a observar é o de cuidado com a Terra, o que significa uma relação amorosa, gentil, boa. O outro conceito é o da sustentabilidade, mas não como o capitalismo o utiliza, pois a hegemonia é um discurso velho, superado.

O Brasil é a capital mundial da água. Temos também uma imensa biodiversidade para oferecer à humanidade. A Amazônia é um bem da humanidade. É um bioma que pertence à Terra. Lentamente vamos compreendendo isto, e se não o fizermos, iremos ao encontro do pior, de um Armageddon sócio-ecológico.

Creio que a consciência está despertando. Vamos descobrindo nossa responsabilidade coletiva. Foi a solidariedade que nos permitiu o salto da animalidade para a humanidade. Sintamo-nos todos irmãos e irmãs, iguais na mesma casa comum, abraçando a Deus e a todos os demais seres. Estes elementos positivos estão dentro do processo de evolução e agora assomam à nossa consciência. Estes valores estão sendo construídos com hábitos e comportamentos novos, novas relações de produção e de consumo. Aprendendo a admirar a diversidade como riqueza da natureza. Como disso o Papa em sua Encíclica: “... que os problemas e dificuldades que temos, não nos tirem a alegria e a esperança".

Celebrando na grande mesa comum, todos desfrutaremos da generosidade da mãe Terra.

Para Santo Agostinho a esperança tem duas formosas irmãs: a indignação e a coragem de mudar. Se começarmos a mudança em nós mesmos, ela se difundirá para todas as partes, fortificando aqueles que também estão lutando. Começar pelo pequeno: imaginar cada um de nós como uma semente. É o princípio de um novo mundo que vai nascer, uma onda que se engrossará e se tornará um tsunami de bondade. Olhando para trás diremos: que tolos éramos destruindo a Terra e poluindo as coisas. Temos de amá-la e nos encantarmos com esse precioso dom que a evolução e Deus nos presenteou. É uma atitude de gratidão poética e não apenas utilitarista.

Na Educação todos os saberes estão interconectados. Educadores ensinam a fazer conexões, criar pontes. Devemos acrescentar a ela uma ética e uma eco-pedagogia, com todos os saberes voltados para a vida. Viver esta grande fraternidade com todos os seres da natureza. Resgatar o sentido da Eco - a casa para os gregos - uma grande comunidade. Somos irmãos e irmãs, entre nós e com todos os seres da natureza, que contêm em si mesmos o seu valor.

A Carta da Terra nos diz ainda para erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental. Não devemos esquecer os milhões que neste momento passam fome, morrem de enfermidades. A quarentena é uma espécie de retiro espiritual imposto a todos. Este isolamento nos permite aproveitar o tempo para nos humanizarmos e enxergarmos como são ridículas todas nossas estratégias de ameaçar uns aos outros com armas de destruição massiva.

Voltemo-nos para dentro, repensemos o sentido da vida. Aproveitemos os momentos de meditação para fazer a viagem mais larga, que é, como disse Jung, a viagem em direção ao próprio coração, que em si é sensível e amoroso e onde está a imagem da luz e de Deus.

Deus criou todos os seres e ama a vida como apaixonado amante. Devemos estar tranqüilos na grande casa que Ele nos presenteou, onde todos estamos juntos e da qual temos de cuidar.

Mateo Castillo

Vivemos uma crise global. Esta crise, já o disse Leonardo Boff, é inovadora, é criativa, pois teremos de nos reinventar e transformar o paradigma dominante sob o qual vivemos e agimos que coloca em risco todos os seres vivos. Converter com inteligência e sabedoria a crise em oportunidade, numa perspectiva global, dentro de um marco ético e sustentada com as nossas experiências, nossas emoções e sobretudo com a informação científica, que ainda não escutamos e ainda não assimilamos.

O novo paradigma de desenvolvimento sustentável nos diz para nos libertarmos dos preconceitos, dos medos e das crenças obsoletas e, como entidades inteligentes, livres, plenas e integradas com o Universo, nos sintamos unos com o todo. Sermos livres espiritualmente, seres autônomos no plano mental e emocional e ousados para atuar, para transformar e nos permitir uma política humanista no marco dos direitos humanos universais e de uma cultura de paz.

Porém este paradigma corre o risco de se esgotar sem haver desenvolvido suficientemente suas possíveis virtudes e benefícios, porque as forças do paradigma imperante continuam erodindo toda a vida.

Devemos questionar tudo o que nos foi inculcado como crenças imutáveis, aspirar abrir novos caminhos, nos redirecionarmos e nos abrirmos para uma nova forma de interpretar e reconhecer os valores do mundo, pois assim teremos a capacidade divina de viver com harmonia e justiça, com respeito e cuidado e, sobretudo com amor, favorecendo a gênese de seres criativos, amorosos, pacíficos e autônomos.

Se amamos a nós mesmos, amamos a Terra. Precisamos de uma convergência profunda de valores, que somente vi manifesta na Carta da Terra, para promover ações conscientes da humanidade na busca de um viver melhor, de forma mais compassiva com o planeta e consigo mesma. O novo paradigma compreende todos os seres vivos sem discriminação: todos devem ser considerados.

Vivemos o grande desafio de harmonizar desenvolvimento com um modo sustentável de viver. Que considere a superação das necessidades humanas básicas e a desigualdade econômica e social. Os problemas sociais são parte da crise ecológica: a pobreza, a desigualdade, a discriminação, a violência, a corrupção.

Visualizo novos cenários em vários âmbitos: na família; nas dimensões econômicas; na relação com a biosfera; na política; na cultura; na transformação da consciência, ou seja, na dimensão espiritual.

A filosofia considera que a consciência é a faculdade humana para decidir as ações e ser responsável pelas consequências. O primeiro desafio somos nós mesmos, nossos demônios internos como sociedade: ódio, ambição, orgulho, discriminação, avareza, individualismo. Eles não nos permitem harmonizar com a totalidade da qual somos parte.

Compreender o caráter sagrado da Terra. Apostar numa transformação da consciência. Teremos de encontrar a inspiração que nos leve a caminhar do individual ao coletivo. Para passar do discurso à ação teremos de internalizar esta necessidade de mudar.

A Carta da Terra é um desafio para a humanidade. A crise global deve ter uma solução global. Perdemos a confiança nas instituições internacionais e nacionais e então a Carta da Terra nos convida a fortalecer nossas instituições e a confiar nelas.

Ricardo Young, Marina Silva e Rose Marie Inojosa

"Rumo a um Novo Sentido de Interdependência Global e Responsabilidade Universal em tempos de crise

Miriam Vilela

A visão de mundo articulada na Carta da Terra fala de uma ética planetária e fala também de uma nova consciência que vai além do interesse próprio, focada no bem comum.

A humanidade precisa de uma nova era de colaboração e de uma nova harmonia entre o ser humano, a natureza e o bem estar social.

É importante tomar este Dia da Terra e todos os demais dias como um convite para refletirmos, pensarmos a nossa essência, nosso papel aqui, nosso sentido de cuidado, de responsabilidade e conexão com o todo.

Ricardo Young

Vivemos um momento extraordinário. De um lado o pesadelo, de outro vemos o parto de uma era que vem sendo antecipada por vários documentos.

A Carta da Terra diz em seu preâmbulo que o destino da humanidade é comum e está estreitamente vinculado ao destino do planeta. É esta relação que vai determinar o quanto esta interdependência pode ser libertadora e resgatar o melhor da vida, ou não.

Verdades estão sendo reveladas a partir de uma tragédia: desperdiçamos demais, viajamos demais, nos distanciamos da vida familiar, das raízes, do território, do cuidar. Mas passamos a entender a dimensão sagrada de estarmos juntos, de nossa capacidade de conexão: apesar de fisicamente afastados, nos reencontramos virtualmente.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e mesmo os Objetivos do Milênio eram ainda muito antropocêntricos. A Carta da Terra, no entanto, foi a primeira a trazer a questão de que só haverá combate à desigualdade, à pobreza e à exclusão social se entendermos a centralidade da vida e do conjunto das espécies, ou seja, a reintegração do ser humano no que ela chama de Integridade Ecológica com a Comunidade da Vida. Ela é a nova bússola ética da humanidade e indica os caminhos a percorrer.

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) apontam as ações, mas na Carta da Terra encontramos os princípios que as balizam e lhes dão consistência.

Estão ocorrendo mudanças surpreendentes que afetam profundamente o status quo e as forças tradicionais. E também um novo nível de conexão, muito facilitada e dinamizada pela tecnologia, que nos permite prescindir de nos deslocarmos e de que as coisas funcionem. Novos elementos que eram marginalizados emergem com força: as redes de solidariedade, a saúde e a vida saudável como elementos estruturadores da sociedade e a denuncia de quão supérfluo é boa parte do nosso consumo.

O capitalismo, tal qual ele é e sempre foi, está sendo questionado já há algum tempo. Diante da desigualdade social e da vulnerabilidade dos mais fracos, os sistemas públicos que deveriam atender aos que menos têm, não o conseguem.

Organizações multilaterais, empresários e financistas também começam a considerar a dimensão socioambiental e as soluções globais. O discurso da competitividade e da marginalização do mais fraco perde força. As forças hegemônicas não deram saída para o mundo e o colocaram onde ele está agora, numa sinuca.

As forças que respondem a esta sinuca, embora ainda muito no início, dialogam com valores e princípios que estão na Carta da Terra: a comunidade de vida, a visão biocêntrica, o combate à pobreza, a comunidade planetária, a interdependência. Não temos outra saída a não ser a reintegração com o tecido de vida do planeta. O que a crise nos revela é a interdependência visceral do ser humano com a comunidade de vida planetária e que não há saída a não ser com um discurso regenerador e reintegrador.

Muito provavelmente as forças hegemônicas disputarão o retorno ao velho "normal", mas as mudanças que estão ocorrendo as farão perder o discurso. Quero ver alguém dizer que o Estado não é mais necessário, que um sistema público de saúde como o SUS não é essencial. Que diga que o equilíbrio fiscal é mais importante do que a renda mínima. Estas teses estão sendo derrubadas, e o que vai surgir daí, eu não sei.

Estamos vivendo no nosso cotidiano o drama planetário. Aquele conceito da Agenda 21 de pensar globalmente e agir localmente já existe. Ninguém mais vai se sentir isolado do que ocorre no planeta. A visão de mundo planetária nos visita em nossas casas. Estamos confinados e ao mesmo tempo livres para habitar qualquer lugar e dialogar com todos. Há alguma coisa simbólica e nova que desencadeia esta nova consciência: um elemento emergente em que as pessoas percebem outra dimensão de ser e estar no mundo que antes não era tão claro. O impacto que isto vai ter na consciência das pessoas e na sua percepção do mundo ainda é muito incerto. Existem elementos de mudanças profundas que estão ocorrendo de forma invisível e que nos levarão a outra forma de nos relacionarmos e a algumas revisões éticas fundamentais.

A mudança é muito difícil. Os principais obstáculos são as forças do atraso que não compreendem o sentido profundo do que está ocorrendo. Mas não necessariamente terão o mesmo poder de persuasão que tinham antes.

Estão acontecendo mudanças profundas na economia e na geopolítica. Provavelmente veremos uma reorganização do sistema econômico internacional e do jogo geopolítico. Tivemos uma experiência nos 15 anos anteriores, que foi interrompida pela crise financeira, de colaboração internacional no combate à pobreza, com um resultado que não é desprezível. Não tivemos uma diminuição da concentração de renda, mas ocorreu a retirada de milhões de pessoas da linha de pobreza nos primeiros 15 anos do século XXI.

Há agora uma concertação de países que assumem um acordo planetário de iniciar uma mudança nos próximos 15 anos, tendo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como metas importantes. Há um comprometimento, cuja importância é reforçada pelo momento que estamos vivendo. São quase 170 países que concordam com metas e sub-metas de ações orquestradas em torno ao combate à pobreza e pela sustentabilidade.

Os ODS desdobram os elementos contidos na Carta da Terra em objetivos e metas. Elas não foram somente endossadas por governos e entes federativos, mas também o mundo empresarial investe fortemente nas ações de responsabilidade social e procuram identificar na sociedade civil organizada ONGs com competência para levá-las à frente. Universidades também irão produzir mais nesta direção. Existe uma convergência na estratégia das empresas, do governo e da sociedade civil organizada em buscar com que os ODS aconteçam.

Os empresários percebem que a natureza do consumo e a relação com o cliente vai mudar para sempre. Há profundas mudanças na economia que irão conduzir à reorganização do sistema internacional, provavelmente um novo Bretton Woods na ordem econômica mundial.

O sistema multilateral terá um papel muito importante nos próximos anos com a redefinição dos governos nacionais, do Estado, dos direitos e sua integração com a questão da sustentabilidade. Não há solução possível fora da sustentabilidade e da democracia, embora as forças do atraso sejam antidemocráticas.

Reconsideremos o papel da amorosidade. Reconhecemos, independentemente de classe social, gênero, raça, poder econômico, que somos todos humanos, vulneráveis, que vivemos a mesma saga, o mesmo momento histórico. Emerge uma consciência profunda de que a natureza humana e sua integração com a comunidade da vida é um valor que supera todos os outros. E os outros valores que elegíamos como fundamentais começam a perder espaço.

Os impactos disto ainda são muito incertos. A Carta da Terra é a referência ética, a bússola destes novos caminhos e, pela sua visão antecipatória, pela sabedoria de seus pressupostos éticos, pela comunhão de fato da comunidade da vida e pela implosão da visão antropocêntrica, consegue dar respostas a estas múltiplas dimensões em que as perguntas começam a ser feitas.

Acredito que nos próximos anos vamos ter discussões muito ricas em como avançar nestas agendas. A minha visão, apesar do pesadelo que estamos vivendo, é esperançosa.

Rose Marie Inojosa

Temos agora como possibilidades durante esta pandemia: voltar para o mesmo rumo em que estávamos ou dar um passo que nos leve para além desta encruzilhada. Cientistas há décadas nos alertam para as mudanças climáticas e para a perda da biodiversidade. É um pedaço de nós que se vai a cada espécie que se extingue. Talvez agora consigamos ir para este novo futuro.

O corona vírus abalou todas as formas do mau viver. Talvez agora nos ajude a entender o que pode ser o bom viver.

Estamos nos reinventando. O cerne da Carta da Terra é o respeito pela comunidade da vida. Quem sabe reencontraremos este sentido? É esta esperança que nos move neste momento.

A nossa interdependência está sendo demonstrada nesta crise do corona vírus pelo inevitável esforço coletivo de continuarmos vivendo.

Não será possível voltar totalmente à loucura em que vivíamos. Muitas pessoas ainda estão presas nas armadilhas dos hábitos que são muito potentes. São gerações mimadas por falsas possibilidades de consumo, que na verdade só se realizam para muito poucos e a um custo terrível. De certa maneira sustentamos este sistema, esta perda terrível de todas as condições para a atual e para as futuras gerações.

A responsabilidade que temos uns com os outros se manifesta neste momento em muitos lugares e em muitos grupos por meio da solidariedade. Estamos num processo de aprendizagem de sermos solidários uns com os outros.

A questão é que ainda excluímos os outros seres vivos. E ainda não entendemos o que é a interdependência, cuja compreensão pode nos levar a reduzir a infernal desigualdade que só cresce e a nossa prática de consumo destruidora. Este aprendizado ainda levará um tempo. Será que deixaremos passar esta oportunidade?

Nesse momento, parece que se abriu uma grande cortina e conseguimos nos enxergar. Ele nos traz um aprendizado e vai se refletir em mudanças. Aprendemos a consumir menos e também que necessitamos muito uns dos outros. Quando voltarmos desta crise atual, perceberemos também o quanto estas armadilhas eram de fato prisões, como aprendemos coisas novas e que é possível fazer diferente.

Parece haver uma dificuldade muito grande em superar alguns elementos estruturais que são alimentados por este velho modelo. Mas também é claro que há coisas surgindo com muita força na consciência do mundo. Vivemos uma disputa de visões. Precisamos de acordos muito amplos para fazer frente às forças do atraso, que não desistem fácil, e apoiar esta transformação que vemos aflorar.

O desafio é muito grande, não é uma coisa dada, mas também não é dado que temos de continuar presos na armadilha do atraso. O importante agora é nos juntarmos o mais possível e nos fortalecermos para o florescimento do novo. Estamos na fímbria de um novo mundo.

Precisamos rever cada pedaço da nossa forma de viver. E um destes pedaços fundamentais é a Educação que atualmente está voltada para este tipo de economia do mundo que vemos ruir. Como trabalhar com a Educação para podermos de fato desenvolver os nossos talentos, habilidades e conhecimentos neste diapasão de amorosidade de uns pelos outros, por todos os seres e pela comunidade da vida?

A grande transformação vai passar pela Educação, mas não essa Educação formal, laboral, prática, mas sim através do amor, através da ciência e do desenvolvimento real das potencialidades que todos temos e que podemos utilizar para realizar essa mudança que queremos ver.

Marina Silva

A forma como estamos lidando com a pandemia vai determinar muito do que vamos fazer. Antes da pandemia já haviam dificuldades para nós que desejamos uma nova comunidade de pensamento e ainda agora grupos de poder muito fortes pretendem voltar ao dito "normal".

Mas há perguntas que a pandemia nos obriga a fazer: o mundo em que a gente vivia era "normal"? As pessoas estão mais propensas à solidariedade nesta lógica da Carta da Terra?

Não vai haver esta conversão em massa, porque as pessoas estão ávidas para voltar a este “normal”. Sendo tão difícil convencer as pessoas de se protegerem contra algo que as pode matar e a seus entes queridos, contra algo que pode fazer colapsar o sistema de saúde e o sistema econômico - como as persuadir a ficar em casa? Agora imagine convencer as pessoas de que daqui a 30 ou daqui a 100 anos poderemos ficar sem água ou ver aumentar cada vez mais os desastres, se elas não vêem agora a tragédia que está a sua porta?

Muitas pessoas pensam que os recursos naturais são infinitos e não se convencem da tragédia. A crise civilizatória deve-se a que as pessoas se identificam com a Pulsão de Morte e vão até as últimas consequências, morrendo junto com o sistema, seja pela pandemia, seja pelas mudanças climáticas. É uma espécie de loucura.

Mas há a Pulsão de Vida também. "A História é cheia de muitas possibilidades. "A realidade responde na língua em que é perguntada".

A experiência que vivemos está nos mudando. E isto não é fácil. Esta forma de estar no mundo está impregnada em nós, ela tenta se repetir. A crise atinge o planeta inteiro. Por isso é tão importante o investimento na transformação. Outro modelo de desenvolvimento que não vai começar da noite para o dia. Tem a ver com nos sentirmos partes de um todo.

Este convencimento tem de ser por amor pela vida, pelo outro, pela natureza e, para mim, que tenho fé, também por amor a Deus, pois é incoerente amar o Criador e destruir a criação, amar a Deus a quem não vemos e não nos compadecermos do próximo a quem vemos.

Fritjof Capra e Sam Crowell

"During and beyond the pandemic"

Miriam Vilela

Havíamos feito um planejamento para este ano e então chegou o corona vírus. Tenho esperança, no entanto, que a pandemia, além de nos fazer ver com novos olhos nossa vulnerabilidade e a do nosso sistema, evidencie também a capacidade humana de, a partir de uma visão de comunidade planetária, se unir, colaborar e dar um passo para um mundo melhor.

Sam Crowell

Uma visão de mundo que não é mais adequada para a sua época, para a ciência, para os valores e para a realidade, não pode abrir-se para as possibilidades da complexidade e da interconexão e fica presa em blocos isolados de separatividade.

E sabemos que o mundo não é separado, é unificado, é um todo, é inter-relacionado e interconectado - e somos parte disso. O que fazemos e pensamos tem validade, não é isolado, faz diferença. Da perspectiva de um sistema, tudo o que fazemos e até mesmo o que pensamos, e tudo o que flui através de nós, afeta o mundo em torno. A mudança na forma como percebemos o mundo mudará a forma como agimos com o planeta e com a humanidade, para superar uma visão de mundo insuficiente e ultrapassada.

Se voltarmos para uma visão mais encantada de uns com os outros e conosco mesmos, acredito que começaremos a aplicá-la aos aspectos práticos da vida.

Baseamo-nos num senso de responsabilidade universal quando buscamos ter um planeta sadio com pessoas sadias. Uma exigência inescapável de nos responsabilizarmos por quem somos e pelo que fazemos, tanto como indivíduos como também por nossas políticas. As instituições de saúde, educacionais e outras, também necessitam responsabilizar-se para alcançar um planeta sustentável e saudável e que se contraponha às mudanças climáticas.

Precisamos usar este tempo da epidemia para parar, olhar, ouvir e sentir o mundo que criamos e refletir quanto aos aspectos positivos que poderão acontecer se tivermos a vontade para isso.

Uma visão de mundo nos diz como lidamos com as coisas, como olhamos para o mundo e para nós mesmos. Como lidamos com este planeta que nos nutre?

Precisamos alcançar uma visão ampliada: superar a ilusão de separatividade, vermo-nos como parte de uma teia interconectada de vida e honrar o planeta que é o nosso lar. Somos uma família humana, uma comunidade terrestre que compartilha um destino comum. Estamos acoplados com o meio ambiente. Devido a que a biosfera é interconectada, ela é sempre dinâmica, sempre se move e muda, assim como nós. Estamos sempre em movimento, em transição, em mudança, em fluxo.

A velha visão de mundo foi construída sobre a metáfora da máquina, do controle. E nós inserimos esta metáfora na Educação. Porém as coisas são não-sequenciais, não-lineares e se movem de forma imprevisível, ainda que probabilística. Em outras palavras: o caos é o pré-requisito para a criatividade. A nova visão holística nos vê e a Terra como um organismo que muda dinamicamente. Usa conceitos de padrões cíclicos, complexidade, diversidade, não-linearidade e emergência.

Vejo a Educação como um padrão cultural. Penso que parte dela deva estar focada em corações e mentes, tendo a sustentabilidade como propósito central e seu conteúdo sendo a ética, os valores, a mentalidade e as perspectivas contidos na Carta da Terra, que é um dos melhores guias para sustentar esta visão. Com esta parte maior em vista, todos os demais conteúdos se conectam. E o currículo seria então uma conversa focada, que ao longo do tempo gira em torno a estas ideias, práticas e valores.

A Educação pode, porém prejudicar o meio ambiente se mantivermos isolados o sujeito e a experiência, focados somente na informação e no seu processamento. Na Educação importa o como ensinamos, e não somente o quê.

A beleza da Carta da Terra foi o incrível processo tão aberto e colaborativo que emergiu junto com estas visões sobre os valores e princípios essenciais realmente necessários ao século XXI. Como poderemos colocá-la no mundo? Sistemas tais como os de saúde e educacionais estão sendo desafiados. Como lidar com estas questões para alcançar um planeta sustentável?

Quando mudamos a maneira de perceber o mundo e as premissas fundamentais sobre o que é a Educação, de como ela se conecta com o sentido maior de quem somos e o mundo em que vivemos, então a mudança acontece rapidamente.

Não há uma metodologia particular e prática para isto. Devemos perguntar: "o que me leva para adiante para agir no mundo?". "O que me retém?". Quase sempre nossas limitações provem dos nossos pensamentos e medos, ou de não termos olhado atentamente para este panorama mais amplo, aonde poderemos abrir novas possibilidades.

Fritjof Capra

A pandemia do corona vírus resultou na destruição massiva do nosso cotidiano com múltiplos impactos que provavelmente conduzirão à profundas transformações sociais, econômicas e políticas.

Numa análise sistêmica, vê-se como todas as dimensões e aspectos desta crise estão inter-relacionados. A meu ver, a crise do Corona vírus é uma resposta biológica de Gaia, nosso planeta vivo, à emergência ecológica e social. Excedemos a capacidade da Terra. A obsessão irracional dos nossos líderes políticos e corporativos por um crescimento econômico perpétuo levou a esta crise multifacetada em que a nossa própria sobrevivência está ameaçada. Cientistas e ativistas ambientais por décadas têm advertido sobre as terríveis consequências de um sistema político e econômico insustentável.

Com a atenção fixada no curto prazo e intoxicadas com os lucros financeiros e o poder político, estas elites teimosamente resistiram aos avisos e desconsideraram as consequências de longo prazo da iminente catástrofe à qual estão agora forçadas a prestar atenção. A desigualdade econômica e social foi colocada a claro pelo corona vírus. Num país depois do outro a crise na saúde resultou numa crise econômica mundial com trágicas consequências.

A derrubada de grandes áreas de florestas tropicais por corporações multinacionais de alimentação, assim como a massiva intromissão em outros sistemas, fragmentaram e fraturaram a rede da vida. A resultante destas ações destrutivas foi que o vírus, que vivia em simbiose com certas espécies animais, saltaram delas para os humanos.

No entanto, da perspectiva da mãe Terra também houve consequências positivas. Quando o tráfico de carros e as atividades industriais decresceram dramaticamente, a poluição em muitas cidades de todo o mundo subitamente desapareceu e espécies animais reapareceram.

Isto não significa que queremos continuar nesta situação, porém o Covid 19 nos mostrou o que pode ocorrer quando as pessoas se dão conta de que a sua vida está em jogo. O mundo é capaz de responder com urgência e coerência, desde que a vontade política tenha sido despertada.

Gaia nos dá valiosas lições para salvaguardar a vida. Haveremos de escutá-las? Trocaremos o crescimento extrativo insustentável por um crescimento qualitativo? Substituiremos o combustível fóssil por fontes renováveis de energia? Mudaremos o sistema intensivo de agricultura industrializada por fazendas comunitárias orgânicas?

Vemos que políticas sociais impensáveis há dois meses atrás, tais como a renda social básica, estão sendo agora discutidas seriamente em muitos países. Se a elas adicionamos políticas que respeitem e cooperem com a natureza, poderemos ter sucesso em restaurar e estabilizar este sistema natural.

Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para dar início a estas iniciativas. Teremos a vontade política para isto? Seremos guiados pelos princípios éticos que estão expostos tão primorosamente na Carta da Terra?

Olhando as pesquisas de opinião nos EUA, verificamos que uma imensa maioria apoia agir contra as mudanças climáticas, pela diminuição da desigualdade e pelo controle de armas. Todos os problemas globais estão inter-relacionados. A epidemia resultou do grave desequilíbrio ecológico e seus impactos são devidos aos correspondentes desequilíbrios sociais e econômicos.

Problemas sistêmicos requerem soluções sistêmicas. Chamo a isto de visão sistêmica da vida. Um dos insights fundamentais que decorre desta visão é de que a natureza sustenta a vida criando e nutrindo comunidades de plantas, animais e micro-organismos. Um dos papéis mais importantes da educação é aprender estes princípios de organização ou de ecologia que a natureza desenvolveu. Chamo a isto tornar-se ecologicamente alfabetizado.

A Educação hoje não é ministrada somente nas instituições tradicionais, mas também em organizações alternativas. Há uma coalizão mundial de ONGs que atuam ativamente na sociedade civil global. Temos nossos centros de aprendizagem, nossos institutos de pesquisa, inúmeros cursos e seminários on-line. Nos 50 anos desde o Dia da Terra houve progressos e mudanças em muitas regiões e segmentos da sociedade.

Ao olhar retrospectivamente para 2020, os historiadores do futuro poderão concluir que, apesar das trágicas consequências da Covid 19, no longo prazo ela pode ter salvado a humanidade e grande parte da comunidade da vida da extinção. Isto seria de fato causa de celebração alegre nos futuros Dias da Terra.

Só iremos superar a crise atual com esforços colaborativos, o que significa um comportamento ético, direcionado para o bem comum. A epidemia do Covid 19 nos mostrou dramaticamente como a Terra pode se regenerar em apenas poucas semanas. Isso aconteceu devido à redução do uso de combustíveis, motivado pelo medo da doença e da morte, mas que pode continuar, com mudanças motivadas pelo nosso amor pela Terra e pela comunidade da vida.




Leonardo Boff é teólogo, escritor, filósofo e professor universitário brasileiro, nascido em 1938 em Concórdia, Santa Catarina. É um expoente da Teologia da Libertação no Brasil.

Mateo Castillo atuou em processos de participação social no desenvolvimento de políticas públicas ambientalistas sustentáveis. É o principal desenvolvedor da Carta da Terra no México.

Ricardo Young é pioneiro na luta pela sustentabilidade e foi um dos disseminadores em 2009 da "Carta da Terra” no Brasil.

Rose Marie Inojosa, pedagoga, mestre em Comunicação e doutora em Saúde Pública, foi diretora da Universidade Aberta de Meio Ambiente e Cultura da Paz (UNAPAZ) em São Paulo.

Marina Silva, historiadora, psicopedagoga, ambientalista, foi senadora pelo Acre (1995 a 2011) e Ministra do Meio Ambiente (2003 a 2008).

Sam Crowell, professor emérito de Educação na Universidade Estadual da Califórnia. Está ativamente engajado com Educação para o Desenvolvimento Sustentável e com a Carta da Terra Internacional.

Fritjof Capra é físico, escritor e diretor do “Center for Ecoliteracy” em Berkeley, Califórnia. Trabalha pela promoção da educação ecológica.



Transcrição, organização e tradução do inglês e do espanhol por Ruth Kelson




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